Nas últimas semanas, um fato que ultrapassou os limites do entendimento, da covardia e da desumanidade provocou reações de repúdio, além de um sentimento incontido de revolta e vergonha, em grande parte da população pernambucana: a gravidez de uma menina de 9 anos, que teria sido estuprada pelo padrasto. Não há outra forma de mencionar essa quimera, não há qualquer eufemismo ou disfarce a ser usado para tratar de um assunto tão infame quanto controverso. Para isso, é preciso que reconheçamos a decadência dos nossos valores e das nossas instituições (dentre elas, a mais preciosa: a família). É necessário que esqueçamos pudores e afirmemos: a violência doméstica é uma constante e o Estado, arraigado pela corrupção, não tem despendido força suficiente para combatê-la. É imprescindível percebermos (ou, finalmente, entendermos) que a prostituição infantil não é história em quadrinhos: ela já tolheu, já maltratou, já humilhou e já pulverizou a inocência, pois a mácula impune de uma única criança constitue crime, ouso dizer, contra toda a humanidade.
Entretanto, o foco de uma discussão que poderia ser séria e responsável foi transferido, de forma quixotesca, para o âmbito da religião e do preconceito. O arcebispo de Olinda e Recife, Dom José Cardoso Sobrinho, decidiu eleger a equipe médica selecionada para interromper a gravidez da menina (que não tem estrutura física para suportar dois bebês, já que espera gêmeos, nem maturidade para ser mãe) à categoria de "moinhos de vento", ameaçando médicos e enfermeiros de excomunhão e empregando toda a sua influência para garantir o fiel cumprimento do 6º dos Dez Mandamentos: "Não Matarás". Alguém esqueceu de ensinar ao arcebispo um dos mandamentos mais importantes da lei da vida: "Lugar de criança é na Infância".
A comunidade deve ser instruída a relatar às autoridades policiais os casos de abuso e de exploração infantil; os professores, diretamente envolvidos com as vivências e o cotidiano da criança e do adolescente, devem permanecer atentos ao comportamento desenvolvido pelo aluno durante o período de atividades escolares; o Estado deve investir em políticas públicas de educação, instrução e combate à violência doméstica, reprimindo a conduta delitiva, oferecendo suporte à família, e, através de sua força coercitiva, coibindo a grande indústria de exploração sexual que agride a infância e fere os princípios do Estado Democrático de Direito.
Fato incontroverso é que a exploração sexual infanto-juvenil efetivamente existe, estendendo-se desde as práticas abusivas cometidas no interior do ambiente familiar até os absurdos expostos em praças públicas, grandes avenidas e albergues mantidos por "cafetinas". Ponto de interrogação é a importância atribuída a essa realidade, que é negligenciada pelo Poder Público (que se omite), pela sociedade (que não reivindica), pela Igreja (que desvirtua a problemática), por mim (que, no quebra-cabeça do conformismo, sou peça fundamental).
Texto copiado do Blog "O Zero e o Infinito" de JULIANA MOURA, Pernanbuco/Brasil.